“Perdi muito tempo até aprender que não se guardam palavras. Ou você as diz, as escreve… ou elas te sufocam.”
— Clarice Lispector
Querida Clarice, se você soubesse o quanto me tornei intolerável às vezes até pra mim mesma, talvez escrevesse um livro sobre a beleza de se perseguir e se permitir ser perseguida também.
Hoje, no entanto, quero falar de um paralelo. a sol me convidou a escrever sobre nós, mulheres sáficas. Ainda é véspera do Dia dos Namorados, são exatas 23h45 e eu tô correndo contra o tempo pra entregar esse texto. Estava ouvindo Cigarette Daydreams, e me lembrei da primeira vez que beijei uma menina. Me senti exatamente como naquela música. Pode soar estranho, meio “???” fora do contexto, mas você entenderia ou entenderá, como as coisas se encaixam quando se percebe que em mulheres existe harmonia.
O paralelo que quero traçar é com a expressão “lésbica o tempo todo.” Eu sei, você já deve ter ouvido isso. Mas não vim falar sobre ela, e sim sobre mim. Sobre a Sol. Sobre você, talvez, que tá lendo.Ser lésbica é como uma montanha. E se descobrir, é como descer essa montanha com o vento no rosto ao mesmo tempo leve e assustador.
Você começa observando todas as mulheres e pensa nelas sem ainda ter se encontrado nelas. E aí alguém diz: “Ah, mas é normal reparar em mulheres.” De fato, é. Mas quando tudo se encaixa, quando você entende por que sempre se sentiu assim… é como aquela cena de But I’m a Cheerleader, quando a mente finalmente grita: “Eu sou homossexual.” A partir daí, tudo passa a ser sobre ser lésbica o tempo todo.
E existe uma beleza imensa em ser mulher e amar mulheres. Neguei isso por um bom tempo, até os dentes. Mas quando meus lábios tocaram os dela, o mundo mudou de eixo. Me lembro bem quando ela disse: “Você vai se apaixonar por mim.” E eu, com aquele sarcasmo que me salva (e às vezes me sabota), respondi: “Talvez você queira muito ocupar esse espaço.” Ela não mentiu. E talvez eu tenha sempre deixado esse espaço vazio, esperando por ela. Nenhuma experiência individual, né?
Amar mulheres é, sim, um ato de resistência. Mas mais do que isso: é um ato de entrega. Não quero me esconder atrás dos discursos já prontos, das frases de impacto político que lemos por aí. É verdade que somos um ato social, que amamos o gênero odiado pelo patriarcado, mas amar mulheres é muito mais do que isso.
Amar mulheres é respirar depois de um mergulho profundo. É abrir os olhos e ver o mar pela primeira vez. É um “deus?” nos tocando com delicadeza e caos. É se permitir ser abraçada por algo que te cura e te assusta ao mesmo tempo. Amar mulheres é sentir o que toca quando se ouve Lovin’ Feeling, é tudo isso, e mais um pouco. É ser um corpo que vibra quando encontra outro corpo que entende. É poesia escrita na pele. E talvez, Clarice, isso seja o bastante pra não sufocar.
A escrita me acha, e às vezes me faz me perder. Sinto que entro tão fundo em mim mesma que o caminho começa a se tornar estreito e confuso. Depois que você se descobre, parece que tudo gira em torno de você ser lésbica. E de fato, isso é muito sobre mim, é o que eu sou, é como eu me sinto.
Mas também é apenas uma parte. Eu sou lésbica, sim, o tempo todo. Mas não da forma como costumam tratar. Depois que você diz pela primeira vez, parece que vive uma afirmação constante de que, mesmo assim, você ainda é mulher. Muitas vezes ouvi frases como:
“Mas você é igual a um homem.”
“Mais um pouco e tu virava um dos caras.”
Direcionadas a mim, ou a alguma amiga. Depois que você se assume, parece que o mundo todo quer te desqualificar como mulher.
Elogiar mulheres pode ser um perigo, você é mal interpretada. Andar com garotos às vezes faz com que te tratem como “um dos caras.” Toda mulher que você elogia ou simplesmente comenta algo, já é uma porta aberta para te colocarem como uma louca apaixonada. Ou acharem que há interesse amoroso. Tua vida sexual, muitas vezes, vira uma coisa que querem invadir. Tudo isso te atravessa. E tem hora que você só pensa em gritar.
Eu sou lésbica o tempo todo, mas ainda sou mulher. Ainda sou um alguém. Ser lésbica faz parte de mim, mas não significa tudo sobre mim.
A Luizi citou a Clarice. E ser lésbica é exatamente assim. No começo, você vai aceitando as coisas, se entendendo… mas depois de um tempo, uma placa de alerta se acende na cabeça. E você só pensa no quanto certos comentários machucam. No quanto, por mais que você lide bem com tudo, ainda assim… sufoca.
Quando meus lábios tocaram os de uma garota pela primeira vez, eu tive medo. Mas também tive certeza. E essa certeza eu carrego até hoje. Uma vez, me disseram que eu dou carinho igual a um cachorro. Achei engraçado, mas é real. Tenho o hábito de amar com a ponta dos dedos quando ainda estou incerta. Quando ainda há dúvida. Quando ainda há medo. Minha vontade é de amar o todo, amar com a palma. Abrir o peito. Mas relações sáficas são muito intensas.
Uma vez também me disseram que eu seria um lírio roxo. O lírio, por si só, significa “desafio a me amar.” Mas o lírio roxo carrega algo espiritual, um “quê” quase poético. E ser lésbica, pra mim, é isso. É me pegar me desafiando a amar, apesar do medo de me afogar. E até na minha escrita eu carrego quem eu sou.
Alguns dizem que sou transparente demais no que escrevo, que eu deveria “filtrar” um pouco. Mas eu não acho. Escrevo porque não sei calar quando algo pulsa demais. Porque amar mulheres me atravessa, como flecha, como vento, como flor. E ser lésbica, pra mim, é como escrever com o sangue ainda quente no papel: não é só identidade, é expressão. É liberdade costurada com medo. É coragem de dizer “eu sou” num mundo que insiste em apagar.
Talvez eu nunca saiba colocar tudo em palavras. Mas sigo tentando. Porque quando eu escrevo, eu respiro. E talvez amar, no fim, seja isso: respirar fundo, se permitir sentir e, acima de tudo, continuar escrevendo, mesmo quando o mundo tenta rasurar quem a gente é.