Bom dia, caros leitores!
Nessa manhã de sexta-feira, quero compartilhar com vocês um conto que comecei a escrever ontem, depois de assistir à nova temporada de Love, Death & Robots. O episódio final traz a história de um gato e o diabo. Confesso que achei o desfecho bem fraco, talvez eu ainda escreva algo nessa linha, mas com um final mais interessante.
Enquanto isso, trago a vocês um pequeno paradoxo inspirado na série. Espero que gostem. Boa leitura!
A morte e o gato
Era um crepúsculo gélido. Os galhos secos das árvores estalavam contra a claraboia, como ossos que se debatem no escuro. No asilo, todos dormiam — mergulhados num torpor profundo, alheios ao que se movia entre as frestas.
Mais uma vez, a Morte vinha recolher uma alma miserável.
A mesma alma que tentava ceifar havia quatro anos. Todos os dias, a mesma batalha. A Morte dançava com o vento, invadia o estreito da claraboia, e se esgueirava até o leito do velho. Lá estava ele: frágil, respirando com dificuldade, pronto, talvez. Mas todas as vezes, no exato momento do fim, o gato; o maldito gato, interrompia o ritual.
Velho, de pelos ralos, com os olhos nublados pela idade, o gato era ainda fiel. Jamais abandonara o dono. Era sempre o primeiro a acordar, miando alto ao perceber qualquer sinal de fraqueza. À noite, não dormia enquanto o homem não dormia. Montava guarda. Como um soldado de quatro patas. Como se o protegesse do beijo da morte.
A Morte tentava diálogo. Explicava, propunha, implorava. Nada surtia efeito. O gato, teimoso, inabalável, não arredava o pé.
O velho era um veterano de guerra. Tinha pouco mais de sessenta anos. Carregava estilhaços na perna e cicatrizes na alma. Lutara bravamente na Segunda Guerra Mundial. Mas a maior dor não fora física. Perdera a esposa e o filho ainda no ventre. Amara apenas uma vez. E nunca mais.
A lembrança da mulher era a única coisa que acalmava seu peito. Desde a morte dela, a vida perdera o propósito. Tornou-se ranzinza. Clamava pela morte, mas ela não o levava. Conservava alguns poucos amigos, antigos soldados do batalhão. Eram oito, restavam três. Reuniam-se como quem vela fantasmas, um enterro eterno, sempre em andamento.
Foi num dia de chuva que o gato entrou em sua vida.
Ferido, com um dos olhos quase cego, arrastava-se à procura de abrigo. O velho, bêbado, cambaleava entre becos, tentando afogar memórias em álcool. O encontro foi um acidente: o gato se assustou, o arranhou; o velho caiu. Mas, ao se encararem, houve silêncio. Um reconheceu a dor do outro.
O homem estendeu a mão. “Calma, eu te ajudo.”
E, contra todas as cicatrizes, o gato confiou.
Desde então, tornaram-se inseparáveis.
Curavam-se em silêncio.
O velho voltou a ser visto com traços de esperança. Aonde ia, o gato ia. Por quase cinco anos, caminharam juntos.
Até que a doença tomou o corpo do velho. Os amigos e vizinhos o internaram num asilo para veteranos. Lá, ele definhava aos poucos, todos os dias. Mas o gato permaneceu. Encontrou formas de entrar, de ficar, de vigiar. Ninguém conseguia tirá-lo dali.
A Morte tentava se aproximar. Durante quatro invernos.
Mas o gato resistia.
Naquela noite, o inverno era mais frio. O velho, mais fraco. A Morte, impaciente.
Naquela noite, cansada, a Morte se curvou diante do animal e perguntou:
— Por que insistes? Por que gastas tua vida tão curta protegendo esse humano do seu fim?
O gato ergueu os olhos cansados e respondeu com a voz rouca de quem viveu mais do que devia:
— Quando eu estava quase sem vida, à beira da morte, ele insistiu em mim. Cuidou das minhas feridas e me deu vida.
A Morte suspirou:
— Mas você não vê o quanto ele sofre? O quanto lhe dói?
— Mas ele ainda está aqui — respondeu o gato, firme.
— E acha justo mantê-lo assim? — retrucou ela. — Só por conforto? Ele continua aqui, sentindo dor. Você o prende.
— Por que pessoas boas como ele devem morrer? — rosnou o gato. — Ele ainda tem tanto a viver...
A Morte manteve o tom calmo, mas havia cansaço em sua voz:
— O tempo dele já é chegado. Viveu mais do que devia. Viveu à sua maneira. Agora é hora de recolher-se.
O gato, com os olhos em brasa, contestou:
— É justo alguém que foi assombrado por tanto tempo, que viu o horror de perto, ser levado assim? Sem paz?
— Não é justo — disse a Morte. — Mas é o ciclo da vida. E a hora chegou.
O gato ergueu-se, o corpo trêmulo de raiva:
— Como pode? A senhora que leva tantas almas, boas ou ruins, como pode ser tão fria? Se isso é vida, por que a maior parte dela ele só sofreu? Por que lhe foi arrancado tudo, restando só o corpo?
A Morte, então, tirou de seu manto negro uma esfera de cristal. Segurou-a com mãos que tremiam levemente e ofereceu-a ao animal:
— Olhe. Veja por si mesmo. Vou te mostrar que ele viveu, sim.
O gato hesitou, depois se aproximou. Dentro da esfera, cenas fluíam. A juventude vibrante. O casamento breve e feliz. As trincheiras. A explosão. A perna dilacerada. A notícia da morte da esposa. A garrafa. O beco. E, enfim, o encontro.
Mesmo vendo tudo, o gato não se calou:
— Isso é viver? Passar quase trinta anos sem propósito? É justo?
A Morte, agora mais rouca do que nunca, respondeu:
— A vida não é justa. Mas você acha justo ele permanecer assim? Preso a essa cama, definhando, com o passar dos anos, só porque isso te conforta?
O gato não respondeu de imediato. Seu corpo tremia. Lá fora, a madrugada apertava o mundo com garras geladas.
Silêncio.
No quarto, o velho dormia. Frágil. O peito arfava devagar. A claraboia deixava passar uma luz fria e prateada. O gato pulou sobre o peito do homem e ali se deitou. Os olhos fixos nos da Morte. Como se dissesse:
"Se quiser levá-lo, terá que passar por mim."
E então, pela primeira vez em séculos, a Morte hesitou, por mais uma vez.
Noite e dia dançavam uma valsa confusa. Os limites entre a luz e a sombra se diluíam como os contornos da memória do velho herói, que se tornava cada vez mais frágil. Seu corpo já não obedecia, e o mundo parecia pesar sobre ele. A cada dia, o gato se esforçava mais. Ajeitava-se ao lado de seu peito para aquecê-lo. Miava quando era hora dos remédios. Ronronava baixinho, como se pudesse embalar a dor em canções antigas.
Numa tarde em que o inverno demorava a ir embora, o velho estava sentado à frente da janela, em sua cadeira de rodas. O sol filtrava-se entre as cortinas, espalhando um brilho morno sobre o chão. O gato observava tudo do parapeito, atento.
Então, o velho falou. Sua voz era fina, arrastada, como quem junta as últimas forças para um gesto importante:
— Meu velho amigo... — disse, olhando o companheiro com olhos embaçados — já se passaram tantos anos desde o nosso encontro naquele beco. Sei que este corpo que carrego já não pode mais partilhar o pão contigo, nem caminhar sob o céu. Estou cansado. Por quase trinta anos, caminhei às cegas pela vida... até que te encontrei. E você me devolveu um propósito. Agora somos dois velhos... e estamos cansados.
Fez uma pausa, o olhar perdido além da janela.
— Você não precisa me acompanhar até a última hora... se estiver cansado, pode ir. Você é livre.
O gato permaneceu em silêncio. Depois saltou da cama com delicadeza e, como em todos os outros dias, aconchegou-se no colo do homem. Suas patas repousaram sobre as mãos trêmulas, e o ronronar preencheu o espaço como uma prece.
Naquela mesma noite, o velho adormeceu profundamente.
E não voltou mais.
O quarto parecia suspenso no tempo. O relógio na parede marcava três da madrugada. Os galhos das árvores, do lado de fora, arranhavam a claraboia como dedos finos tentando alcançar algo que não se podia mais tocar.
A Morte entrou sem ruído. Dançava devagar com o vento frio que atravessava a fresta mal fechada da janela. Sua presença não causava medo, mas um silêncio espesso, o tipo de silêncio que só se ouve quando uma vida termina.
Aproximou-se do corpo inerte com a serenidade de quem já fez isso vezes demais. Observou por um momento o rosto do velho herói, finalmente sereno. Nenhum grito, nenhum pesadelo, nenhuma lembrança da guerra. Apenas paz.
Mas então seus olhos se detiveram no colo do velho. E lá estava ele.
O gato.
Os olhos semicerrados, o peito ainda subindo e descendo lentamente, as patas firmes sobre as mãos do homem. O ronronar, embora fraco, ainda vibrava no ar, como um último feixe de resistência.
A Morte suspirou. Baixou o capuz. E falou, sem arrogância:
— Está feito. Ele se foi.
O gato não se moveu. Nem um gesto, nem um som.
A Morte, pela primeira vez em muito tempo, se sentiu tocada. Não pela tristeza, mas pela fidelidade. Pela dignidade silenciosa de um animal que amou tanto quanto um ser humano seria capaz.
Curvou-se levemente.
— Você venceu, pequeno guardião. Por quatro longos anos, adiou o inevitável. Lutou com coragem, com ternura, com tudo que tinha. Fez uma pausa, ele não partiu sozinho.
O gato, então, olhou para ela. Seus olhos já estavam turvos, cansados.
E naquele instante, como quem entende que sua missão chegara ao fim, o ronronar cessou.
A Morte, com um gesto incomum, se agachou. Tocou ambos com suavidade, o homem e o gato. E algo como um sopro leve pairou no ar.
Duas almas deixaram aquele quarto naquela noite. Uma, marcada pela guerra. A outra, por amor.
E, por um instante breve, talvez mais breve que o bater de asas de um pássaro, a Morte sorriu.